Depois do hiato

O mundo ainda não acabou. Ainda…

Um novo novo normal é estabelecido. Corrigindo: um novo novo normal está em processo contínuo e acelerado de desenvolvimento. Novas versões diárias da normalidade são lançadas sem que nós, usuários, possamos sequer entender em qual delas estamos inseridos. É como se vivêssemos numa casa que está em processo ininterrupto de demolição e construção simultâneas e nós, dentro dela no escuro, tentando encontrar o banheiro ou a cozinha. Tentando adivinhar por pequenos sinais se estamos no cômodo certo.

Vagamos nesse novo novo normal onde a normalidade é relativizada. O normal pra alguns é a aberração de outros. O que difere na norma entre a civilidade e a barbárie é o interesse de poucos. Nesse novo novo normal o chocante já nem choca mais. É normal. Já chocou, não choca mais. É como o ovo da serpente eclodido.

E é com essa sensação incômoda de cômodo empoeirado em reforma que retiro as teias e removo o mofo das minhas palavras. Não porque tenha algo que eu precise dizer, nem porque exista algo que precise ser dito e que ainda não tenha sido dito de todas as formas e em tudo que é canto. Mas, porque talvez, só talvez, eu tenha sentido uma certa falta de mim, uma saudade do que, por muito tempo, foi como me defini. Talvez, só talvez, eu precise de um marcador, uma âncora que me situe nesse tempo à deriva.

Escrevo agora, essas linhas enferrujadas, emboloradas e cheias de teias para me lembrar de como é escrever. Mesmo que esse texto não tenha nenhum significado e nenhuma qualidade artística, sendo apenas um texto-faxina ou texto-assinatura-de-presença, ele serve pra lembrar que as minha letras- engrenagens ainda estão funcionando. Serve pra eu registrar, mesmo que mal registrado, que nesse novo novo normal errático, a raça humana, apesar de sua tendência ascendente ao auto extermínio, por enquanto não se extinguiu. Por enquanto.

E assumo, sem um pingo de constrangimento, que escrevo agora, principalmente, pra eu confirmar que, apesar da ausência prolongada, da fluência e lirismo atrofiados pela falta da prática, ainda sou aquela que escreve. Ainda bem.

Talvez, só talvez, eu também esteja apenas lançando mais uma garrafa no mar.


Texto escrito após ouvir esse episódio de podcast aqui:

A luta

Eu queria só falar de amor
Mas a dura realidade
De tanta crueldade
Traz a rima batida da dor

Eu queria só falar de amor
Mas a cara fria da morte
Que se antecipa em nossa sorte
Traz o ritmo soturno do horror

Eu queria só falar...


É a luta
Dias de glória distantes
Marte está mais perto dos magnatas
Do que termos um sistema que não nos mata
De doença, tiro e fome
Todo dia
A esperança já é teimosia
Continuar vivo só pra irritar
Os que comem ambrosia
E arrotam caviar
E nos querem mortos
E nos querem escravos
Sem comprar nossa posse
E nos oferecem chibata
Pra continuar na mamata
Que eles sempre tiveram
"Porque eles merecem"

Eu queria só falar de amor...

É a luta
Se liga, que pra esses filhos da puta
Não importa se você usa gravata
Ou um chinelo furado
Se teu carro é popular ou importado
Se teu cartão é vermelho ou platinado
Se teu teto é barraco ou apê financiado
Pois se dá pra contar os números no extrato
Se não tem conta em Paraíso fiscal
Nem algum juiz, deputado e senador pra uso pessoal
Nos fim das contas estamos no mesmo lado
E não é o deles
Eles só vão fingir (às vezes) se importar
De acordo com o tanto que você os imitar
De acordo com o tanto que você se submeter
E defender
Quem tira teu sangue no modo gourmet
Em troca de fake status ou benefícios

E eu só queria falar de amor...


É a luta
Dizem que agora demos pra bancar Matusalém
E logo arrumam um jeito de nos mandar pro além
No atacado
Em milhares, centenas de milhares
Estão torcendo que bata logo o milhão
Torturados sem anestesia,
Esfomeados em carestia
Sem vacina
Sem auxílio
Sem ar
Enquanto eles contabilizam o lucro
E nos fazem pagar o prejuízo

E eu queria só falar de amor...

É a luta
É esperar sem cruzar os braços
E temer a ordem de mãos pra cima
É não silenciar enquanto engolimos o choro
E não nos calarmos diante de tanta chacina
E repetir até que o mundo todo ouça
Que não aceitamos essa sina
E repetir enquanto houver voz
Repetir pra que a dor não seja esquecida
Que quem faz esse país somos nós
E nós não aceitamos
Esse governo genocida



E eu queria só falar de amor...

Vala comum

É vala comum
É cova rasa
Engolindo corpos
Devorando almas

A morte onipresente
Espreita em cada esquina
Com sopro displecente
A má sorte determina
E discrimina
Entre os vips com vacina
E os pobres mortais
Sem acesso à medicina

É vala comum
É cova rasa
Engolindo corpos
Enlutando casas

A morte e seu emissário
O presidente genocida
Que fala da dor com escárnio
E segue seu plano homicida
Com seu séquito suicida
Uma massa adormecida
Entorpecida
Que entrega a própria vida
(Sem pensar)


É vala comum
É cova rasa
Engolindo corpos
Devorando almas

E a morte passeia pelas cidades
Levando aos milhares
Os que não leva de enfermidade
Arrasta pela fome
Ou outra atrocidade
Que faz de alvo os sem sobrenome


É vala comum
É cova rasa
Engolindo corpos
Enlutando casas

É vala comum
É cova rasa
É vala comum
É cova rasa
É vala comum
É cova rasa

Será meu corpo?
Será o seu?
Minha alma?
Ou a sua casa?
No luto sofrido
No luto corrido
Que mal dá pra sentir

É vala comum
É cova rasa

Um lugar que ninguém deve ir



Guerra suja

Não há alarmes, nem sirenes
O abrigo tem cara de lar
Não vemos fumaça
Há um certo silêncio
Não há parede a desabar

As bombas caem sem ruído
Invisíveis
Quase invencíveis
Sem esquadra para contra atacar

O inimigo é declarado
E ainda assim idolatrado
Enquanto faz de alvo
Seu próprio eleitorado

O inimigo é conhecido
E ainda assim enaltecido
Quando caminha
Pelo povo adoecido

As baixas são civis
O front é em qualquer lugar
Os objetivos são vis
É só matar pelo matar

O inimigo é protegido
Por religiosos, foi ungido
Enquanto traz ao solo
O inferno prometido

O inimigo é blindado
Por um séquito engravatado
Quando a justiça clama
Para assumir o seu legado

Com interminável munição
Vinda pelo ar
O sádico capitão
Fez de fanáticos, aliados
Um exército de suicidas
Em missões genocidas
Em cada canto, espalhados
Multiplicando a destruição

O inimigo é declarado
E ainda assim idolatrado
Enquanto seu povo é enterrado
Sem velório em caixão lacrado

O inimigo é declarado
E ainda assim idolatrado
Enquanto destrói tudo e mata todos
Sem defesas, sufocados






Comprimidos amargos

Vai faltar caixão 
E transporte escolar
Virou rabecão

O ministro mandou avisar
Que agora é pra economizar ar

O presidente da nação
Durante uma transmissão
Recomenda jejum e oração
E a massa sem nome
Com barriga de fome
Obedeceu
Com desgosto

STF, congresso e senado
Não fazem nada
Até que sejam fechados
E não possam mais nada fazer

O país precisa de vacina
Mas o que tem é cloriquina
Ivermectina
O preço alto da gasolina
E todo dia uma chacina

Pena que o antiparasitário
Não funciona pra certo tipo de empresário
Nem pra certas infestações que acometem as instituições

Que titica!
O pior é que ainda pior fica
E fica muito

Cadáveres e mais cadáveres
Centenas de milhares
Alguns milhares por dia
Em um país com nome de madeira
Quem diria, dessa maneira
Que por vontade ultra arbitrária
De um homem sem compaixão
E de outros tantos, por omissão
Se tornasse uma gigante urna mortuária
Que destino vil
Do arrasado Brasil


Durma-se com um barulho desses


E fique em casa se puder



"E agora, José?"


Estado de alerta

Depois de adiar o sono com um programa banal, você deita na cama e percebe o medo de dormir. Dormir e acordar num mundo ainda pior do que o de antes de deitar. Medo de que o alvorecer traga mais notícias ruins, seja nos jornais, seja numa ligação. A gente não sabe o que está por vir. Mais mortes? Menos direitos? A perda da própria vida? Não tem como saber.

Então, a gente se agarra ao que tem. Enquanto houver um teto sobre a cabeça e comida sobre a mesa, enquanto não nos faltar o ar, a gente vai sobrevivendo. Vivendo como dá.

E aí, você se vê pensando se não é hora de aumentar o limite do cartão, de esticar o cheque especial. Qualquer coisa que garanta uma passagem na rodoviária mais próxima pro lugar mais distante que conseguir. E aí, cogita rotas e calcula o tempo até a primeira fronteira. “Quantos meses à pé do Rio até lá?” O pensamento inusitado dispara como um tiro. “Mas será que eles vão me deixar passar?” A dúvida corta feito navalha. “E, se eu passar?” Então, na mente, correndo feito um trem bala, um vagão atrás do outro de tudo que você deixaria para trás. Tudo correndo numa direção oposta, pra bem longe de você…

Nessa hora é que você se dá conta: há os que escolhem ir ou ficar. E, há os que vão sem querer e os que ficam sem optar. Nisso, você percebe que você está onde está: aqui. E, é isso… É torcer… E, sem saber se tem forças, se preparar pra lutar. Do jeito que for, do jeito que der. Enquanto tiver voz. Enquanto não faltar ar…

Viver…

e vencer o medo de dormir…

Dia D, hora H

Em mais um Ano Absurdo
Num País Paralisado
As Pessoas Perplexas
Com Imensa Ignorância
Com Imperdoável Insensibilidade
Com Inexplicável Insensatez
Com Irreparável Incompetência
Vendo a Multiplicação das Mortes
Por Incontestável Irresponsabilidade
Na Prevenção da Pandemia
E na Minimização da Miséria
Se Perguntam "Por quê?"
Questionam "Quando?"
E neste Momento de Medo
Um Ministro de M
Anuncia Abobalhado
Que a vacina virá
No Dia D e na Hora H
Isso, se o P Pateta, Palhaço, Parvo, Perverso, Psicopata, permitir


Brasil, um país na B



27/08/2020

Faz tempo que não escrevo madrugada a dentro. Fica cada vez mais difícil construir uma fantasia, diante dessa realidade distópica. Não faz muito sentido ir se rasgando em palavras, se por baixo dessa camada falsa de resiliência, a gente está mesmo é em carne viva. Vivemos das pequenas coisas, não só pela beleza e importância, mas sim porque é o que se tem. Nos agarramos à elas, seguramos na unha qualquer coisa que nos dê um fiapo de esperança de que dias melhores virão, de que a humanidade não se perdeu num buraco escuro de mofo, plástico e egoísmo. Pensamos a todo momento (e talvez desejamos) que a urgência se apresentará e tenhamos que escolher entre fugir e lutar… Enquanto isso estamos num estado de suspensão. Acuados, ouvindo explosões por todos os lados e sem saber se e quando uma bomba vai nos atingir… Estamos em suspensão, nessa guerra que começou antes mesmo do vírus se espalhar. Pois já há algum tempo que um mal, que parecia controlado, parecia adormecido, se dissemina aqui e em outros cantos. E já há algum tempo, que anestesiados, permanecemos em suspensão. Não se iludam, é uma guerra. É a guerra das guerras e ela já vem ocorrendo desde antes de eu nascer. E o inimigo real não é uma forma de vida microscópica, que só fez escancarar aos nossos olhos os conflitos, os territórios, as baixas… O inimigo real é verdadeiramente invisível e comanda, com as suas mãos implacáveis, generais, capitães, líderes de todo tipo, a levarem suas tropas para essas batalhas sem fim. Onde quase todos perdem, onde quase tudo se perde e só uma meia dúzia de homens comemora as vitórias, com champanhe, protegidos e sem nunca sequer sentir o cheiro do front… Entro a madrugada escrevendo, mas fabular a realidade é quase impossível, quando os deuses  vigentes se comportam como demônios espalhando o ódio, o inferno é distribuído à atacado e o paraíso é uma promessa inatingível, parcelada em doze vezes no cartão…Para não terminar essa madrugada tão pessimista,  guardo umas linhas para desejar a boa noite e o bom sono. Que Morpheu traga os sonhos e que deles venha a faísca inspiradora do despertar…

Hibernação

Quando a ignorância se espalha
E desdenha da ciência
Quando o preconceito se orgulha
E desafia nossa paciência

Quando os ricos triplicam seus ganhos
Com o desespero dos esfomeados
Quando a família corrupta
Lava dinheiro em doces refinados
Quando armas são facilitadas
E livros são elitizados

Quando diante da doença
Ridicularizam a prevenção
Quando a pilha de mortos
Já não traz mais comoção

E uma criança violentada
É amaldiçoada em nome da religião

Quando todo esse mal emerge
Como praga devorando sonhos
Eu me agarro na esperança
De que toda essa apatia
De que toda essa letargia
Que paralisa os justos
Diante de absurdo dia a dia
Seja apenas uma forma de hibernação

E que despertaremos como seres de garra
E que despertaremos como seres de força
E que despertaremos como seres de coragem

E que nosso bradar será tão alto
Que terão que nos escutar
E que sejamos tantos
Que nada, nem ninguém
Possa nos fazer recuar

Saíremos das cavernas
Quando a primavera chegar

O inverno está quase no fim…

Subversão

Um arco-íris devasso macula, d-e-s-c-a-r-a-d-a-m-e-n-t-e, com todas as cores mais escandalosas, o cinza chumbo das nuvens pesadas, cor essa aprovada pelas autoridades conservadoras (in)competentes.

As fotos estampadas em vários veículos de comunicação foram acusadas de montagem, desmentidas em discursos e lives. Disseram alguns políticos que se tratavam de flagrantes resgatados de outras épocas, como artimanha conhecida de comunistas ou, um golpe baixo da oposição. Jornalistas e fotógrafos foram atacados por insultos vindos de hordas acéfalas ou amaldiçoados ao inferno na pregação de certos líderes religiosos. Alguns diziam que deveriam ser presos por divulgarem tamanha obscenidade.

Mas, ao contrário do que se diz na versão oficial, a chancelada pelo governo, em uma tarde de fevereiro, em certa hora houve um arco-íris. Desobedecendo às ordens de que tudo que é belo, bom e livre fosse proibido, ele estava lá, radiante no céu, pra quem quisesse desfrutar. Os que olharam para cima puderam o admirar, gratuitamente e sem restrições, colorido em todo seu simples esplendor.

Na manhã seguinte havia algo diferente no ar, como um suave perfume de flor ou um canto alegre de pássaros soltos. Havia também um brilho diferente nos olhos das boas pessoas, das que acreditam na fraternidade, igualdade, liberdade e nas coisas belas. Umas diziam que era Deus, outras diziam que era a natureza, outras diziam que era a ciência. Mas, todas tinham a mais absoluta certeza de que elas e alguma força bem poderosa estavam no mesmo lado…

Botando mais vigília no tempo, pra não deixar que o pesadelo tome o lugar dos sonhos

E é preciso sonhar. Mais que nunca é preciso sonhar. Mas, sonhar com os olhos abertos e a mente alerta. É preciso manter o riso, mas um riso discreto, para que a gargalhada debochada ou o riso solto venham no momento certo. É preciso o silêncio para que o grito justo seja ouvido. A arte é necessária e a luta imprescindível. É preciso amor. Mais que nunca é preciso amor: a gentileza dos pequenos grande atos. Só assim seremos um só. Uma massa resistente ao ódio e a violência. Eles podem ter o poder agora, podem ter as armas, mas nós temos a nós mesmos. E somos tão poderosos que nos esquecemos do nosso poder. Nós temos a nós mesmos. E somos muitos. Nossa voz será um coro ensurdecedor. Nossas mãos e braços terão a força de milhares de bombas. Tentarão passar por nós, mas serão derrubados um à um. Nós temos à nós mesmos. Se nos dispersam, como esporos nos fazemos brotar ainda mais. E cada vez mais fortes. Somos feitos de poeira de estrela e sonhos. De olhos abertos e mente atenta sonhamos. Formamos uma massa de amor e esperança.

E, sempre há muitas pedras pelas calçadas…

É por aí…

Enquanto o mundo se contamina pelo ódio e a intolerância, num sábado ensolarado meus ouvidos são tomados de músicas do passado. De quando a desesperança não se espalhava como erva daninha, sugando a terra, secando mudas e sementes. O céu azul do começo da tarde relembra tempos mais despreocupados e livres.

Sempre me perguntei como as pessoas seguiam suas vidas nos momentos mais absurdos a história. Hoje eu sei. Entre desalentos, indignações, a gente faz o que pode. A gente faz o que dá.

E põe pra tocar vozes antigas, dança, canta como se não houvesse ontem ou amanhã…

Cause I’ve got one hand in my pocket
And the other one …”

Imagem de: https://www.pinterest.com/pin/163818505180686474/

Na real

Quem conhece esse espaço há um bom tempo e, de certa forma, me conhece, sabe que a constância nunca foi uma obrigação dos meus escritos. Já tive fases de escrever mais de um texto por dia, já postei aqui esporadicamente, já sumi por anos… Não que nos períodos de ausência não houvesse inspiração, nem houvesse o que ser escrito, mas o que acaba por definir o que vira texto ou não é a necessidade. Ou a minha necessidade de escrever ou ao que eu entendo por necessidade de ser lida.

No momento, as palavras que me vem não cabem nesse espaço. A realidade que nos cerca é cinza, estranha e lamentável. Não que em meio ao caos eu não seja capaz de sentir os olhos doerem com a beleza do azul do céu de maio, nem tenha deixado de sentir o coração quentinho ao ver o cachorro roncando no sofá no meio da tarde, muito menos que tenha deixado de amar. Eu ainda sou esse amontoado de sentimentos, emoções, sensibilidade e sonhos. Só que minha inspiração segue uma ordem de urgência, as palavras que estão no início da fila, gritando, prontas pra sair, não pertencem a esse universo de sutilezas. Tenho até uma certa inveja de certos escritores que mesmo vendo as atrocidades dos campos de batalha, mesmo sendo testemunhas dos piores acontecimentos históricos foram capazes de falar das pequenas grandes coisas belas que fazem a vida valer a pena. Foram capazes de discorrer sobre amores e flores entre distroços e sangue. Eu sei que consigo fazer o mesmo, tenho fileiras e mais fileiras de madrugadas silenciosas, de saudades, de risadas, de olhares… Mas, perante ao que se apresenta diante das nossas vistas, dia após dia, não consigo deixar que a fila de prioridades seja burlada. Não me sinto a vontade em dar espaço ao que é sussurrado, enquanto tem tanto a ser gritado aos quatro ventos…

E, o que deveria ter o volume de mil alto falantes provavelmente não caberia aqui. Talvez seja hora de eu retornar à outros espaços meus ou até mesmo criar um espaço novo para dizer o que eu acho que deva ser dito. Escrever o que precisa ser lido. Ainda não sei. Por hora, são sementes aguardando solo…

Sob um céu lindo de outono…

Quem era, quem já foi

Lembro das suas estrelas
Das suas constelações
Emitindo um brilho fraco
Arranhadas por rastros de sangue

Lembro dos seus olhos
Vazios e sem vida
Da tristeza mal ocultada
Nos seus sorrisos amarelos nas fotografias

Lembro de quando pedia ajuda
Em mensagens cifradas
De dentro da prisão
Quem você era
Quem já foi

Lembro de ver uma sombra borrada
Uma forma que lembrava
vagamente
O homem que conheci

Lembro bem
Quem você era
Quem já foi
E é por isso que dói tanto
Logo agora que a sua vida volta a ser sua
Logo agora que o brilho começa a retornar
Perceber que você não se importa
Em perdê-la mais uma vez
Perceber que você não cuida
Para que não se apague novamente

Lembro de você
Com carinho
Com ternura
Com amor
E é porque lembro
Da sua luz
Que dói tanto vê-la se esvair
Mais uma vez

Lembro bem
Quem você era
Quem já foi
Há pouco tempo
E a há muito tempo
O ser cativo
E o homem livre
Com carinho
Com ternura
Com amor

Eu lembro…
E dói…

Um novo ano começa, vejo a história se repetindo como uma farsa triste. Um abismo que você ainda nem terminou de sair te engolindo de novo pouco a pouco. Meus braços cansados de te segurar, minhas mãos arranhadas pelo monstro que você não quer soltar.

Um ano novo começa como uma reprise do que passou. Uma reprise cheia de clichés baratos, choros falsos, más intensões, chantagens emocionais descaradas, ofensas gratuitas e manipulação sem disfarces. Um filme ruim em que a todo momento questionamos a ingenuidade excessiva do mocinho. Um folhetim mal escrito em que me pergunto como alguém pode continuar insistindo nos mesmos erros?

Um novo ano que já começa velho. As mesmas feridas que nem terminaram de cicatrizar são reabertas sem cerimônia. É duro sangrar e ver que é em vão.

Um ano novo começa. Tento não desistir de você. Eu estou sempre tentando. Tento não desistir de você. Eu estou sempre lutando. Mas, é um novo ano. Ele pode ter começado igual, mas eu farei o que for preciso que termine diferente. Se não o for pra nós dois, será só pra mim.

Um ano novo começa. Que seja um novo ano…

Quantas estrelas cabem na sua pele?
Tantas constelaçoes
E um sorriso sol
Tímido de manhã de primavera

Quantas melodias surgem das suas mãos?
Entre silêncios alegres
Ou barulhentos
E voa baixo
No assobiar dos ventos
E no pedalar das estradas

Quantas histórias cabem nos seus dias?
Enquanto vive mil vidas
Em dias de 99 horas
Quanta coisa incontável
Gravada em cada instante

Em cada estrela

Tantas constelaçoes

Um universo…

Bom dia

Que seja um dia bom
Que sua voz não nunca embargue
E que seus olhos não se avermelhem

Bom dia
Que seja um dia bom
A calmaria depois da tempestade
O alívio ao cessar a dor

Bom dia
Que seja um dia bom
Que a esperança ganhe da ansiedade
E que os abraços sufoquem a saudade

Bom dia
Que seja um dia bom
De paz e risos
De cor e luz

Bom dia
Que seja um dia bom
E que de tão bom vire rotina
Transformando um simples desejo
Na mais verdadeira afirmação…

Álbum

Teve uma época que a Colombina ouvia Joy Division, Radiohead. Cantava, em melancólica nostalgia, os versos da Legião Urbana.

Ultimamente, a Colombina anda prestando atenção na trilha aleatória da vida. Os sons incidentais, naturais ou não. A música improvisada do cotidiano. O silêncio…

Às vezes, essa trilha supreende por dizer o que precisamos escutar…

O leopardo lamenta suas feridas, mas não percebe que o ninho de espinhos foi ele mesmo quem criou…

Pobre leopardo engaiolado, seu espaço fica cada vez menor…

O cadeado está aberto, mas insiste em permanecer onde está…

Pobre leopardo acuado… suas cores desbotam a cada dia…

Será que o leopardo ainda se sente livre pra sonhar?

Enquanto isso, a coruja o acompanha de longe…

Sobre laços, jaulas e sacarina

Ofereço laço. Prefere o nó. Ofereço amor. Prefere posse. Olhos que admiram. Escolhe olhos que vigiam. Uso a voz que consola. Prefere os gritos que acusam…

Como animal que se prende às próprias correntes, desfila cativo ao lado de sua dona que o mantém em rédeas curtas e o exibe orgulhosa.

Não adianta oferecer as asas da liberdade para quem faz questão de trancar a própria jaula. Não adianta oferecer o mais pleno dos amores para quem prefere as migalhas racionadas dos desejos mais egoístas.

O adoçante artificial pode parecer mais doce que o verdadeiro. Mas, no fim, sempre deixa um gosto amargo…

Nostalgia

Tem cheiro de insenso indiano
Sabonete de caixinha
E café

Tem gosto de brigadeiro de Ovomaltine
Beijo sem motivo
E café

Tem textura de rede de dormir
Pele com pele
E caneca de café

Nostalgia é café
Carinho e risada
E riso
E sorrisos
Desses que escancaram o rosto
Que escancaram a alma
E fazem a gente se sentir criança novamente

Nostalgia
É uma saudade esquisita
De coisas desimportantes
Que importavam tanto
Em sua despretensiosa desimportância

É um cachorro de pelúcia fazendo um solo de guitarra…

Meia noite e alguma coisa

A Colombina solitária sente a virada da noite pra madrugada, como se ela mesma fosse o tempo. Hoje ela não vê estrelas no céu, mas tem luz nos olhos. O falso silêncio da cidade, repleto de carros distantes, programas de entrevista vizinhos, geladeiras, bombas d’agua, passos na escada do prédio e alguns latidos vigilantes de cachorros em algum lugar entre o aqui e o lá, compõe uma conhecida sinfonia. No fundo, um ruído quase impercetível de cigarras (ou seriam grilos?). O vento roça de leve a pele pra lembrar que, apesar do calor que foi o dia, o inverno se aproxima. Quase todos dormem. A Colombina solitária não vê estrelas. Mas, o que são estrelas pra quem carrega o universo no peito? Quase todos dormem, menos a Colombina solitária que tem luz no olhar…

E um camafeu-coração que cabe o infinito…

(Ainda) Somos tão jovens

Hoje o dia acordou noturno. Céu escuro com o ofuscar barulhento de um ou outro raio. Tenho um desses compromissos inadiáveis da vida adulta. Sento no banco do ônibus com o guarda-chuva fechado pingando ao lado dos meus pés. O rádio do coletivo canta: “a tempestade que chega é da cor dos seus olhos…” Ouço o murmurar tímido de um passageiro ou passageira acompanhando os versos. As janelas, cobertas por gotas em um padrão aleatório, transformam a paisagem numa pintura estilizada. Eu tenho o meu próprio tempo…

Temporal…

Cinza lindo…

O céu amanheceu entre o azul pálido e nuvens encardidas. Algum vizinho ouve alguma música popular que desconheço. O cachorro dorme encolhido no sofá pra espantar o frio. Preciso pegar uma mantinha pra ele. Enquanto o mundo lá fora se agita com possíveis faltas temporárias e divide os próprios sentimentos entre medos e esperanças, eu fumo meu cigarro com uma estranha sensação de calma. É apenas mais uma manhã de sexta-feira. Mais um dia de outono. O vizinho diminui o volume do som. Ouço pássaros cantando. O sol empurra com sua claridade algumas nuvens. Apago o cigarro. Mais uma manhã linda de outono. Aquela sensação de calma continua. A vida continua…

A tarde avança a ponto de se acender a luz da cozinha. Um dia acinzentado, enevoado como alguns ânimos que encontrei pelo caminho. A tela do celular avariada (por dentes caninos) me fez buscar as páginas (em celulose) de um livro de mistério durante os meus trajetos e minhas esperas. Quantos trajetos cabem em algumas horas? Quantas esperas cabem num dia? O céu nublado não me assusta. Meu humor segue inabalável. Sigo esperando por novidades, por dias melhores. Sigo por trajetos e esperas…

Esperança…